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Uma performance em que 250 pessoas vestidas de branco atravessam o Tejo num mesmo barco, e ao chegar à Estação Fluvial de Belém, marcham juntas e pacificamente enquanto cantam ópera a plenos pulmões. A performance “Libertas – Da condição de pessoa livre”, de Vasco Araújo, deu-se em junho de 2019, mas após este longo isolamento obrigatório, a sensação é que muito mais tempo se passou. E quem sabe quantos meses serão necessários até que um encontro do tipo volte a acontecer? Com máscaras, luvas e sem contato social algum, ninguém pode sequer oferecer a mão. É em momentos de crise como este, porém, que a arte se faz ainda mais necessária: ela ajuda a nos aproximarmos, e proporciona espaços de convivência, onde é possível oferecer também o braço, a atenção e a empatia.

A emblemática performance é uma das ações que integram o extenso programa do 4Cs – From Conflict to Conviviality through Creativity and Culture. Ou, como a criatividade e a cultura podem propor novas possibilidades de convivência em meio a tantos conflitos políticos, econômicos, sociais e ambientais do século 21? O projeto co-financiado pelo Programa Europa Criativa da União Europeia tem quatro anos de duração e pesquisa as maneiras como a mediação na arte e na cultura, e a criação participativa e coletiva, criam o diálogo necessário para a resolução de conflitos. Atividades agregadoras como a performance de Vasco Araújo despertam uma sensação de coletividade e conexão e fazem pensar, por exemplo, na liberdade nos dias atuais: em quantas sociedades contemporâneas não é permitido soltar a voz?

Iniciado em 2017, o projeto tem Portugal como país-sede e acontece em oito países em simultâneo. “O 4Cs é ambicioso - e talvez idealista - nos seus objetivos”, admite Luísa Santos, a curadora portuguesa que está à frente do programa. “Mas é preciso lembrar que é feito por um conjunto de instituições com um trabalho muito sólido na relação da arte com a sociedade, em particular em tempos de conflito”. A instituição coordenadora do 4Cs é a Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica de Lisboa, onde Luísa Santos é professora e pesquisadora. O CECC - Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da universidade ligado ao Lisbon Consortium gerencia todas as atividades do 4Cs e tem na equipe a reitora da UCP, Isabel Capeloa Gil, além de professores como Peter Hanenberg. Adriana Martins e Inês Espada Vieira; curadoras e investigadoras como Ana Cristina Cachola, Daniela Agostinho e Fabíola Maurício; produtoras como Maria Duarte; e, finalmente, a colaboração de alunos como Ana Trincão, Federico Rudari, Julia Flamingo, Mattia Tosti, Sofia Steinvorth e Teresa Pinheiro.

Outra exposição emblemática organizada pela equipa foi a da holandesa Aimée Zito Lema, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, em 2018. Suas serigrafias estudavam as imagens como dispositivos de violência, e como elas podem perpetuar ou subverter memórias. Desta vez, o trabalho em coletivo se deu com o o Grupo de Teatro da Escola Secundária Filipa de Lencastre e o Grupo de Teatro do Oprimido. A artista propôs que alguns adolescentes pesquisassem memórias de suas famílias do 25 de Abril e as transformassem em performances. Foi uma maneira destes jovens sentiram na pele o peso da história, e se colocarem no lugar do outro.

Para além das fronteiras portuguesas, o projeto também tem exposições, programação de filmes, laboratórios de mediação, residências, workshops e conferências nas outras sete instituições parceiras. São elas: Tensta Konsthall, em Estocolmo; SAVVY Contemporary, de Berlim; a londrina Royal College of Art; a Fundació Antoni Tàpies, de Barcelona; Vilnius Academy of Arts, na Lituânia; o museu dinamarquês Museet for Samtidskunst; além da parisiense École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs.. Como se vê, participam do projeto tanto universidades como museus de arte contemporânea – essa articulação é um grande diferencial do programa. Com a crise global do Coronavírus, por exemplo, representantes destas instituições olham para suas condições locais e a partir daí propõem discussões e colaborações que podem acontecer em apoio mútuo entre os países. Se, na política e na economia, a parceria entre diversas nações é cada vez mais rara, a arte pode (e deve!) cumprir este papel.

Sobre como a arte e as práticas culturais ajudam a enfrentar os desafios gerados pelo Covid-19, Luísa Santos analisa: “Acho que, mais do que compreender as mudanças, trata-se, inevitavelmente, de fazer parte delas e das suas consequências”. Por isso, em abril, durante o isolamento obrigatório, quatro exposições online foram publicadas no site do projeto (que, por sinal, é uma plataforma bem completa de registro das atividades e produção de conteúdo colaborativo sobre o assunto). Enquanto o sul-africano Jabulani Maseko faz uma pesquisa sobre a identidade, o espaço doméstico e o corpo, a espanhola Cristina Mejías pesquisa o poder das narrativas. Já a portuguesa Joana Patrão aborda temáticas relacionadas à natureza, assim como Gregor Graf que investiga as mudanças climáticas nos seus desenhos. Ponto positivo para o fato da organização não tentar transpor uma exposição física para o mundo digital (o que é impossível), mas usar a não-linearidade e a polifonia da internet a seu favor. Assim, as quatro exposições viraram narrativas fragmentadas com inserções das curadoras Sofia Steinvorth, Andreia César, Maria Eduarda Duarte e Teresa Pinheiro, além de textos com outros pontos de vistas sobre os trabalhos e sua relação com o mundo.

Em outubro, as atividades físicas do 4Cs devem voltar. Talvez mais enxutas e com algumas adaptações, mas mais imprescindíveis do que nunca para a criação de novos espaços de convivência nos primeiros meses de convívio social pós-Covid. Na Appleton Associação Cultural, as artistas Ângela Ferreira e a australiana Nithya Iyer irão propor respectivamente um laboratório de mediação e um workshop, ambos abertos ao público. No próximo ano, o 4Cs recebe o iraniano Rouzbeh Akhbari para residência e exposição e, em julho, um encontro entre representantes de todas as instituições envolvidas irá acontecer durante a Summer School, na Universidade Católica de Lisboa. Até 2021, o projeto trabalha em confrontar o vírus do medo e da incerteza que se espalham junto com a crise de refugiados, as crises climáticas, a ascensão da extrema-direita, entre tantos outros problemas globais, e propor que se repense a perigosa separação entre “nós” e “eles”. Não à toa, em um dos seus textos, Luísa Santos incluiu mais um “C” para o título do projeto, referente à “Changes” - às mudanças que ações propostas pelo 4Cs desejam provocar.

 

 

Julia Flamingo
Nascida em São Paulo, tem graduação em Jornalismo e História e é mestranda em Culture Studies na Universidade Católica de Lisboa. Comanda o site Bigorna – um olhar generoso sobre a arte atual. Colabora como repórter de artes visuais para veículos nacionais e estrangeiros. Trabalhou como repórter e crítica de arte da revista Veja São Paulo entre os anos de 2015 e 2017 e foi assessora de eventos como SP-Arte e Bienal de São Paulo.